As imagens que nos chegavam a todo instante dos desabrigados que perambulavam pelas poucas ruas não inundadas de Nova Orleans, ou que se degladiavam dentro do estádio Superdome, não deixavam nenhuma dúvida: eram todas de negros pobres e - fora as gangues de saqueadores que logo se formaram com o intuito principal de conseguir alimentos e se defenderem dos bandidos que também ali foram parar – eram, em sua grande maioria, idosos, obesos, mulheres e crianças. Eram os que não tinham automóvel particular, uma renda suficiente para uma vida digna; eram os que representavam um peso para o Estado. O caos prosseguiu por vários dias depois da ida do furacão Katrina. Não havia policiamento, defesa civil, atendimento sanitário ou médico/hospitalar. Helicópteros lançavam sacos de comida, que se tornavam imediatamente em focos de enlouquecidas batalhas campais. Explosões de substâncias químicas abalavam quarteirões, o odor insuportável dos cadáveres em putrefação anunciava um futuro macabro para aquela população abandonada, e o risco iminente de doenças infecto/contagiosas rondava a todos. Parafraseando Demétrio Magnoli, ”há mais de meio século, durante o bloqueio de Berlim promovido pela URSS, os EUA organizaram a célebre ponte aérea que, durante dez meses, sustentou a metrópole alemã, fornecendo-lhe comida, remédios, combustíveis e até chocolate. A maior operação logística da história, em tempos de paz, mobilizou todos os aviões de transporte americanos e britânicos na Europa, que realizavam, num dia típico, uma média de uma aterrisagem a cada três minutos em cada um dos três aeroportos de Berlim Ocidental. Mas, esse país, não conseguiu proteger ou retirar os refugiados do estádio Superdome, que disputaram alimentos a tapa, sofreram estupros e se viram obrigados a organizarem grupos de autodefesa, para permanecer vivos.”.Não existe nada comparável à logística de guerra americana. No Iraque, as colunas blindadas que capturaram Bagdá numa operação de poucos dias estendiam-se por centenas de quilômetros de deserto, enfrentando forças hostis e tempestades de areia. O país que cumpriu essa missão e tantas outras de ataque a povos e nações espalhadas por todo o planeta, não foi no entanto, capaz de salvar daquele inferno seus cidadãos pobres e negros de Nova Orleans. Nenhuma outro país deixaria seus cidadãos tão desamparados diante de um desastre natural daquelas proporções. Geralmente, em situações daquela gravidade, as nações se dão as mãos, esquecem suas diferenças ideológicas e, principalmente, seu orgulho e soberba, colocando acima deles o bem estar de cada cidadão vitimado: pobre ou abastado, negro ou branco. Desconfio que as cenas de Nova Orleans não ocorreriam em países da nossa empobrecida América Latina, na Coréia do Sul ou mesmo em Cuba que, por sinal, colocou de imediato centenas de médicos à disposição dos seus eternos algozes. Aquelas cenas nos remeteram à situação de falência do poder público típica dos países mais pobres do mundo ou à completa irresponsabilidade de Estados que desprezam a vida das pessoas. Essa primeira premissa, concordo, é questionável por enquanto, mas, com relação à segunda, não tenho nenhuma dúvida de que é inteiramente verdadeira.
Um país que já cometeu as atrocidades que os EUA cometeram em tempos de guerra ou de paz, disfarçadas sempre por notícias favoráveis de uma mídia atrelada apenas a conveniências econômicas, ou acobertadas por resoluções submissas do Conselho de “Segurança” do ONU, dando a tantos atos terroristas americanos, títulos como: “Em Defesa da Democracia”, “Para Libertar Aquele Povo Oprimido”, ou, o que está mais em voga, “Exterminar os Terroristas”, e uma conseqënte aparência de legalidade.
O governo Bush é, obviamente, o culpado imediato pela tragédia, mas, é preciso enxergar a paisagem inteira. “Os EUA não souberam socorrer Nova Orleans pelo mesmo motivo que não conseguem imprimir cédulas eleitorais unificadas ou modernizar seu sistema de voto eletrônico. Desde a administração do outro republicano Ronald Reagan, nos anos 80, quase todo o serviço público americano foi desmontado, até se tornar uma montanha de ruínas. A máquina Federal renunciou ao propósito de atender a população e, como conseqüência, já não existem as repartições, os burocratas, as rotinas e os procedimentos voltados para responder a emergências civis. Nos tempos do faroeste, salvavam-se os que tinham armas. Hoje, escapam os que têm dinheiro.” – diz ainda Demétrio Magnoli.
Diante do furacão Katrina, o governo americano só conseguiu alertar os proprietários de automóveis para abandonarem a cidade. Bem depois do desastre, deslocou do Iraque forças militares com a prerrogativa de atirar contra as gangues que agiram em liberdade na cidade desamparada.
Nova Orleans é um diagnóstico sobre o sentido de uma vergonhosa opção histórica: os EUA sabem matar cidadãos civis, crianças e idosos de outras nações, seja individualmente com suas modernas armas que enxergam à noite e bombas que penetram qualquer superfície, ou seja coletivamente, através dos subsídios aos seus produtos agrícolas ou se valendo das envenenadas bombas nucleares que dizimaram milhares de civis japoneses após a segunda guerra mundial, mas, não sabem, sequer, proteger a vida dos seus negros e pobres.
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